Não gosto de você, Papai Noel! Também não gosto desse seu papel de vender ilusões à burguesia. Se os garotos humildes da cidade soubessem do seu ódio à humildade, jogavam pedras nessa fantasia!
Você talvez nem se recorde mais. Cresci depressa e me tornei rapaz, sem esquecer, no entanto, o que passou. Fiz-lhe bilhete pedindo um presente, a noite inteira eu esperei contente, chegou o sol e você não chegou.
Dias depois, meu pobre pai, cansado, trouxe um trenzinho velho, empoeirado, que me entregou com certa hesitação. Fechou os olhos e balbuciou: “É pra você… Papai Noel mandou…” E se esquivou, contendo a emoção.
Alegre e inocente nesse caso, pensei que meu bilhete com atraso chegara às suas mãos no fim do mês. Limpei o trem, dei corda, ele partiu, deu muitas voltas, meu pai sorriu e me abraçou pela última vez.
O resto só eu pude compreender quando cresci e comecei a ver todas as coisas com realidade. Meu pai chegou um dia e disse, a medo: “Onde é que está aquele seu brinquedo? Eu vou trocar por outro na cidade”.
Dei-lhe o trenzinho, quase a soluçar, e como quem não quer abandonar um mimo que lhe deu quem lhe quer bem, disse medroso: “Eu só queria ele... Não quero outro brinquedo, quero aquele, e por favor, não vá levar meu trem”.
Meu pai calou-se e pelo rosto veio descendo um pranto, que eu ainda creio, tão puro e santo, só Jesus chorou. Bateu a porta com muito ruído, mamãe gritou, ele não deu ouvidos, saiu correndo e nunca mais voltou.
Você, Papai Noel, me transformou num homem que a infância arruinou. Sem pai e sem brinquedos. Afinal, dos seus presentes, não há um que sobre para a riqueza do menino pobre que sonha o ano inteiro com o Natal!
Meu pobre pai doente, mal vestido, pra não me ver assim, desiludido, comprou por qualquer preço uma ilusão: num gesto nobre, humano, decisivo, foi longe pra trazer-me um lenitivo, roubando o trem do filho do patrão.
Pensei que viajara. No entanto depois de grande, minha mãe, em pranto, contou que fora preso. E como réu, ninguém a absolvê-lo se atrevia. Foi definhando, até que Deus um dia entrou na cela e o libertou pro céu!
Aldemar Paiva
A casa era por aqui... Onde? Procuro-a e não acho. Ouço uma voz que me esqueci. É a voz deste mesmo riacho.
Ah quanto tempo passou! (Foram mais de 50 anos) Tantos que a morte levou! (E a vida... nos desenganos...)
A usúra fez tábua rasa da velha chácara triste: Não existe mais a casa... – Mas o menino ainda existe.
Manuel Bandeira
Batidas na porta da frente É o tempo Eu bebo um poquinho Pra ter argumento
Mas fico sem jeito Calado, ele ri Ele zomba Do quanto eu chorei E eu não sei
Aldir Blanc e Cristóvão Bastos
Eu deixarei que morra em mim o desejo de amar os teus olhos que são doces Porque nada te poderei dar senão a mágoa de me veres eternamente exausto. No entanto a tua presença é qualquer coisa como a luz e a vida E eu sinto que em meu gesto existe o teu gesto e em minha voz a tua voz. Não te quero ter porque em meu ser tudo estaria terminado Quero só que surjas em mim como a fé nos desesperados Para que eu possa levar uma gota de orvalho nesta terra amaldiçoada Que ficou sobre a minha carne como uma nódoa do passado. Eu deixarei... tu irás e encostarás a tua face em outra face Teus dedos enlaçarão outros dedos e tu desabrocharás para a madrugada Mas tu não saberás que quem te colheu fui eu, porque eu fui o grande íntimo da noite Porque eu encostei minha face na face da noite e ouvi a tua fala amorosa Porque meus dedos enlaçaram os dedos da névoa suspensos no espaço E eu trouxe até mim a misteriosa essência do teu abandono desordenado. Eu ficarei só como os veleiros nos portos silenciosos Mas eu te possuirei mais que ninguém porque poderei partir E todas as lamentações do mar, do vento, do céu, das aves, das estrelas Serão a tua voz presente, a tua voz ausente, a tua voz serenizada.
Vinicius de Moraes
É longo o tempo de poder voltar depois do tempo em que saber ir faz parte do desafio de querer ser.
E depois do tempo de saber partir mais difícil é entender por que se deixa o que se deixa e com que deslumbre.
Sentir o antigo peso de ter partido tomado partido de relva adversa em que não se deita.
E a grama à qual se volta aversa se muda em carrapicho no qual não se deita mas que se deixa.
Se deixa colar na roupa no corpo. mas é próxima a hora de partir outra vez e outra e mais outra.
E voltar sempre à ficção de encontrar-se de ferir-se no fio do colonião de verificar um novo alheamento.
Entre destituir-se e recuperar-se uma placa de vende-se em sua casa não desmente a desapropriação.
Marcos Siscar